A Última Panela

Agosto de 1986. Morava em São Leopoldo onde cursava jornalismo na Unisinos. Para quem não conhece a região, "São Léo" fica a 30km de Porto Alegre, depois da capital gaúcha vem Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul e chegamos à São Leopoldo, ao lado de Portão e Novo Hamburgo. Partes da grande Porto Alegre.

Num fim de semana, iria ter um show do Raul Seixas no Gigantinho (do Inter), peguei meu "fuca" e bora lá. Ainda passei na casa de dois amigos em Porto Alegre, eles não se interessaram, e segui minha jornada sozinho.

Raulzito já estava mal de saúde e quem "tocava" o show era o camisa de vênus Marcelo Nova. Eles lançaram o disco "Panela do Diabo", que seria o derradeiro do maluco beleza. Morreu uns três, quatro meses depois. Era doido demais. Foi além.

Em que parte será que o cara que tinha dois pés para cruzar a ponte desanimou, desistiu do infinito?

Tem um vídeo dele no YouTube onde ele está na praia quando uma onda arrastou o carro dele. Raulzito deu razão à onda, "ela tá certa", somos nós que estamos invadindo sua natureza. Era o maluco natureba.

Ele sugeriu uma sociedade alternativa (embora numa entrevista ao Jô Soares afirmou que era apenas uma música), porém os militares já estavam de olho nos "subversivos"...

Na verdade, Raulzito era um cara contra qualquer tipo de sistema, sempre desconfiando dos criadores de programas impostos. Acabei de ler "Os Trabalhadores do Mar" de Victor Hugo e lembrei de um trecho onde o escritor francês dizia que o vento e o mar estão repletos de mistérios. Embaixo de suas águas, os mares possuem forças que não vemos, compõem-se de tudo, e entre "várias misturas, a do oceano é a mais invencível e a mais profunda". A sensibilidade "oceânica" do Raulzito corrobora.

Já passei crises, como quase todos, e com o tempo descobrimos que o sol volta, e "prosseguir" deveria ser lei, buscar uma força (não sabemos daonde) com "F" maiúsculo, mesmo que o vento e a ventania sejam contrários. E aí o amor, a paixão e o otimismo são essenciais, pois quem ama alguém (ou mesmo coisas), quer algo, deseja, ele vai em busca, visualiza um objetivo com sua alma energizada.

No show, estávamos lá reverenciando nosso ídolo, eu mais "prontinho" que ele. Eu tentando controlar minha "maluquez" (já descontrolada). E ainda que ele estava cansado, doente, dava para ver em sua cabeça retalhada auréolas, auras, arco-íris, auréola boreal...

Lembro de 40 anos atrás, quando "matei" as duas últimas do colégio para comprar um disco dele, chegar em casa para ouvir "Gitã". Tempo...ah, o tempo.

Eu adolescente aprendendo a ser louco, um maluco total...que beleza (apesar de Epicuro me alertar para não exagerar nas doses...te cuida guri).

Mas, voltemos a última panela, não vou falar dos clássicos dele, todos conhecem e sim do CD com Marcelo Nova. Engraçado, poucos conhecem o CD e na minha opinião, um dos melhores trabalhos dele. Vou falar das músicas Nuit, Século XXI, Carpinteiro do Universo, Quando eu Morri e Banquete de Lixo. Em Nuit, Raul diz que anda de passo leve para não acordar o dia e que a noite não teria melhor companheiro que ele. Ele dizia que era "o mais fiel companheiro que a noite queria". Mas credo! Ah, anos 70, 80...

Na música "Quando eu Morri", viajamos no mundo psicodélico e dá para sentir uma "despedida" do mano véio. Ele canta revelando que tinha morrido em 1972 mas esperava ressuscitar para juntar os retalhos de sua cabeça. Era mesmo, um maluco total...

Embora a letra fosse de Marcelo Nova, tudo a ver com Raul..."um psiquiatra disse que eu forçasse a barra para voltar à vida, e eu parei de tomar ácido lisérgico e fiquei, quieto, lambendo minha própria ferida"...tá loko...

Banquete de Lixo fala de noites em Nova York, Quando numa madrugada Raulzito "perdido" encontra um mendigo vestido de palhaço e que "teve a manha de um banquete apresentar".

Sensacional...

Talvez a mais conhecida do CD seja "Carpinteiro do Universo", onde os dois dizem que são carpinteiros de si mesmos. Doidos.

Realmente uma pena ter partido tão cedo, tinha muito ainda para nós mostrar. Ainda em "banquete", ele diz que seu amigo Marceleza "já me disse com certeza, não sou nenhuma ficção...e assim torto e de verdade com amor e com maldade, um abraço e até uma vez"...

Minha filha se chama Marcela devido a essa música, era uma fase que eu ouvia esse disco 24h por dia concordando com Raul pois "o hoje é apenas um furo no futuro, por onde o passado começa a jorrar."

E assim vou lembrando de noites das décadas de 70, 80 e 90 curtindo Raulzito no meu velho toca-disco em minha casa ou nas praças, com o carro estacionado tomando vinhos ou aquelas geladas, no toca-fitas do meu fuscão. Acompanhando o desenvolvimento tecnológico, primeiro com fitas cassete, depois CD, depois vídeos, depois pen drives e assim chegando ao século XXI...mesmo porque eu nasci há dez mil anos atrás.

Que pretensão. "Somos tão presunçosos que gostaríamos de ser reconhecidos por toda a terra e até por pessoas que virão quando não existirmos mais. E somos tão vãos que a estima de 5 ou 6 pessoas que nos cercam nos distrai e nos contenta"(Pascal).

Toca Raul...