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Ananke

No prólogo de "Os Trabalhadores do Mar", o escritor francês Victor Hugo sintetiza três de suas principais obras, o Corcunda de Notre-Dame de Paris, Os Miseráveis e o próprio os "trabalhadores". As três obras representam a religião, a sociedade e a natureza. O infeliz corcunda reflete os dogmas religiosos com sua vida reclusa na Catedral parisiense, onde a religiosidade (ou, a falta dela), se relaciona de forma estranha com a humanidade.

"Os miseráveis" fala das leis e suas consequências, às vezes necessárias, às vezes nefastas, como o trágico fim do inspetor Javert cometendo suicídio. Sua implacável perseguição à Jean Valdjean com sua obsessão ao mundo das leis, levou suas crenças à extremos irracionais.

Lembrando, os miseráveis sobrevivem numa Paris em ebulição política onde os excluídos formam maioria. No romance, Valdjean fica preso 19 anos por roubar apenas um pedaço de pão...

O policial Javert, no entanto, em sua cegueira justiceira persegue Valdjean pois ele é, afinal, um ex-presidiário.

Quanto aos trabalhadores do mar, Victor Hugo completa sua "Tríplice Ananke" quando realça a terceira ordem, a natureza das coisas.

Ananke significa fatalidade em grego, e unindo as três, Victor Hugo completa sua ananke final, eis "que envolvem o homem, junta -se a fatalidade interior, o ananke superior, o coração humano". Isso em Março de 1866.

Gilliart, personagem dos trabalhadores dos oceanos é um morador da ilha de Guernesey na Normandia, onde vive isolado e é visto pela comunidade como um bruxo. Tem uma boa vida, não passa necessidades, mas é muito jovem e nunca teve uma vida social ou sexual. Por timidez, até evita se relacionar com outras pessoas.

Em sua solidão, nosso escritor francês (que também se "exilou"), desliza suas frases poéticas, revelando faces e características dos solitários, como o sono, "O sono está em contato com o possível...o mundo noturno é um mundo...e a noite é um universo onde o sonho é o aquário da noite".

Show.

Porém, nem tudo é escuridão para Gilliart, sua musa vive nas proximidades, trata-se de uma princesa que levava a vida como se "o dia de ontem não existia, vivia na plenitude do dia de hoje. Eis o que é a excessiva felicidade e naquela moça a lembrança dissipava-se como neve que se funde".

É Déruchette, criada com todos os mimos pelo seu tio, Mess Lethierry que cuidou da menina depois dela perder seus pais. Mess Lethierry é um marinheiro aposentado que tem um barco a vapor que serve à toda a comunidade. Quando uma tempestade leva seu barco às profundezas do mar, oferece a mão de sua princesa para quem recuperar sua preciosa embarcação.

Aparece a grande oportunidade para Gilliart encaminhar a terceira ananke, a do amor, que nosso escritor trata como essência da natureza humana.

É Victor Hugo cravando sua literatura em nossas almas. Seus verbetes assimilando nossas fatalidades, premiando o ananke do coração humano.

Ele desnuda a natureza da paixão formando a terceira onda, mas Gilliart tem ainda que enfrentar os moradores da ilha, pois seus conhecimentos são confundidos com bruxaria.

A rejeição de Gilliart já vimos outras vezes, como em Quasímodo, Fantine, Valdjean, etc. Assim percebemos que as obras de Victor Hugo sempre desafiaram essas "desumanidades", sempre tratando das injusticas sociais em toda sua vida.

Lutemos pelo corcunda, lutemos por Jean Valdjean, lutemos por Fantine, lutemos por Cossete, lutemos por Quasímodo, lutemos por nós e por nossas "anankes".

Num discurso na Assembleia em 1849, o escritor francês disse que "no mês passado, durante a epidemia de cólera, uma mãe e seus quatro filhos foram vistos procurando alimento em meio aos restos imundos e pestilento dos ossarios de Montfaucon! Ora senhores, esse tipo de coisa não pode acontecer, a sociedade precisa empreender toda sua força, toda sua solicitude, toda sua inteligência, toda sua vontade, para que tais coisas não mais ocorram".

Victor Hugo descreve "os trabalhadores do mar" como uma homenagem à encantadora ilha de Guernesey no Canal da Mancha, local onde viveu e que segundo ele, ainda seria sua morada final, as "terras" de seu túmulo.

Homem da literatura, admirador de Napoleão Bonaparte, eleito pela Academia, sua humanidade sempre se direcionou aos excluídos e miseráveis, aos aleijados como Quasímodo e teve seu reconhecimento quando um milhão e meio de pessoas acompanharam seu cortejo final. Paris parou no caminho do Arco do Triunfo ao Panthéon. Era Victor Hugo em sua ananke definitiva.

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1 Comment


williakatia
Mar 11, 2021

Que linda homenagem a Victor Hugo! Parabéns!

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