É Strogoff mesmo, não é estrogonofe. É incrível como vou redescobrindo Júlio Verne., esse é o terceiro sobre ele. Verne é um autor onde a inventividade (existe essa palavra?), supera a expectativa daqueles que conhecem apenas suas principais obras, como "A Volta ao Mundo em 80 Dias", "Viagem ao Centro da Terra", entre outras.
Ele nasceu em 1828 e faleceu em 1905 deixando uma vasta literatura.
Foi considerado o rei da ficção científica com seus romances extraordinários e complexos, fugindo das tradicionais lutas entre o bem e o mal, o certo e o errado. Ele narrava com outros quesitos e a ficção, "passava por cima" dessas razões.
Em Miguel Strogoff o autor revela, por exemplo, diferenças de culturas quando um mesmo fato é visto com muitas peculiaridades. O que para um francês pode ser extraordinário, para um russo, nada mais normal, e do cotidiano.
Seu lado poeta também é significativo quando relata um baile típico do século XIX: "A agradável confusão de tantos uniformes aparatosos, de tantos vestidos de cauda e de tantas jóias de preço, formava um vistoso caleidoscópio".
Ainda nos mostrou o imenso Rio Volga com seus 4200km, cortando e recortando o Império Russo com os vapores da época que pareciam formigas subindo e descendo seus rios e canais.
Verne brilha em suas frases: "das margens do Volga, salpicados por rodas dos vapores, levantando bandos de patos que fugiam lançando gritos estropidosos". Que maravilha.
No romance, Strogoff recebe a missão de levar uma correspondência até a Sibéria, viajando 5500km, em plena invasão tártara. As tempéries do clima com temperaturas abaixo de zero grau, dificultam sua missão.
Os lagos desapareciam diante de tanto gelo. Na epopéia de nosso herói, Júlio Verne vai revelando a geografia do país e suas vilas isoladas.
Evidente que não se compara com nossas viagens, com postos, hotéis e restaurantes a cada 10km. Em sua jornada, Strogoff enfrenta enormes distâncias onde somente a hospitalidade dos camponeses serve de descanso e refeições. Assim o autor deflagra a Rússia do século XIX, (o livro foi publicado em 1876), quando o país enfrentava a invasão dos Tártaros no Oriente.
O que encanta nas narrações de Verne é que viajamos junto, "passamos" frio e vamos filosofando diante de barreiras que não conhecemos. O existencialismo entra em choque com tamanhas diferenças temporais e suas nuances. E assim, vamos descobrindo o Czarismo, a Sibéria, o mundo ríspido do homem russo. Conviver com todas essas dificuldades, onde Strogoff deve ser "capaz de suportar tudo, o frio e o calor, a fome, a sede e o cansaço".
Já as pragas dos mosquitos, esses diabinhos, são atemporais, não tem diálogo. Quando querem infernizar, são intoleráveis. Verne também não esquece das mordeduras desgraçadas. E quando Strogoff atravessa os pântanos de Baraba, tem que lutar contra pernilongos, moscas aquáticas e não tem como não sair daquela região com o rosto infestado de "nódoas vermelhas".
Durante sua árdua missão, Strogoff é reconhecido pelos inimigos e ferido nos olhos, ficando cego. Os Tártaros imaginam que ele não é mais perigoso e liberam o enviado do Czar. Porém, a ação da lâmina incandescente falhou no seu objetivo. Strogoff segurou suas lágrimas e por milagre, o vapor nas pálpebras foram suficientes para aniquilar ações do ferro e volta a enxergar. Ele vai superando tudo, contra todos.
Miguel Strogoff vai se tornando um verdadeiro representante da alma russa e também de Júlio Verne. Esses são os prazeres da leitura,,a imaginação e descobertas de culturas, onde a filosofia, o existencialismo, o coletivo e a própria individualidade remontam nossas vidas. Não tem como ficar imune, nossos valores mudam, nossa razão pede esclarecimentos, como diria Kant.
Como sou da área da Comunicação, relevante lembrar esses processos, afinal pensar comunicação na atualidade é envolver todos contextos (sociais, culturais...) que estão entrelaçados.
Essas complexidades afastam o especialista, e tornam-se necessárias em vários momentos em nossas formações culturais. Como vou entender Miguel Strogff e sua cultura numa época tão singular e diferente. Como diria Edgar Morin, isso não significa abandonar os especialistas "destronando a ordem", mas tratar de unir a ordem com a desordem.
A literatura pode oferecer isso...
Gostei de saber... obrigada!