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Pedra Sobre Pedra

  • cocatrevisan
  • 15 de ago. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 16 de ago. de 2021

Não gosto das divisões de ciclos nas literaturas filosóficas, porém com Camus é impossível dissociar tais ciclos.

Na década de 1930 ele já revelava seus ciclos do Absurdo, da Revolta e do Amor. No primeiro, ele expôs o absurdo de nossos cotidianos, os mistérios individuais, angústias e suicídios nos livros "O Estrangeiro" e o "O Mito de Sísifo". A Europa chorava o caos da II Guerra Mundial nos combates entre nações e estrangeiros e o próprio Camus se sentia um estrangeiro na França pois era argelino, e sentiu os dramas de um europeu, "não" europeu. Apesar de ser considerado existencialista, se dizia representante do absurdismo.

O segundo ciclo foi o da Revolta (A Peste, A Queda, O Homem Revoltado). Ele pretendia encerrar sua literatura com o ciclo do Amor, porém não conseguiu, porque morreu em 1960 num acidente de automóvel. Na primeira fase, no mundo de Sísifo(1942), Camus escancarou o horror da guerra enquanto no "estrangeiro", o principal personagem, Mersault, revelava uma vida sem objetivos, indiferente a tudo e a todos. Como diz Zeca Pagodinho, "deixa a vida me me levar". Porém, Pagodinho se referia e almejava uma vida no sentido de uma (in)sustentável leveza do ser. Mersault vive com total indiferença até com a própria morte da mãe, para ele tanto faz ter amigos ou não, recusa uma promoção para morar em Paris por puro comodismo e quando sua namorada pede ele em casamento, responde com um evasivo "tanto faz, mas a gente pode casar, se você quiser". Ah, e completa ainda dizendo que não ama a menina. Que simpático o rapaz né? Assim, Camus vai dissecando as condições humanas com suas ilusões, desilusões e sentidos de vida.

E para não caírmos em tentação, é necessário um equilíbrio entre evidências e o lirismo, um meio termo, como do Lá Palice (senhor de Jacques de Chatannes 1470/1525) e do louco Dom Quixote. Nem tão maluco nem tão certinho fazendo sempre o óbvio. Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo mas vivendo e aprendendo a jogar, como Camus sugere, "o verme se encontra no coração do homem, lá é que se deve procurá-lo. Esse jogo mortal que vai da lucidez diante da existência à evasão para fora da luz, deve ser acompanhado e compreendido". Tipo assim, controlando minha maluquez.

Sentir-se estrangeiro desanima qualquer alma, pois trata uma separação do homem não apenas em relação ao seu país, mas à identidades e seus absurdos, não sobrando pedra sobre pedra como Sísifo viveu. Para lembrar, Sísifo era Rei de Corinto e enganou a morte duas vezes. Na primeira, quando a morte apareceu, ele com sua astúcia conseguiu amarrar ela em seu castelo. Quando a morte conseguiu se libertar, levou Sísifo para o reino da morte. Lá novamente enganou o inferno e fugiu se escondendo por muitos anos. Quando morreu de velhice, não teve jeito, e no mundo obscuro recebeu um castigo para a eternidade.

Tinha que carregar uma enorme pedra até o cume de uma montanha, chegando lá, a pedra rolava abaixo para recomeçar a carregar o pedregulho novamente, e novamente...e novamente. Como um trabalho inútil.

A metáfora de Camus é essa, trabalhamos e vivemos carregando nossas pedras. Na verdade, o conto faz parte da mitologia grega, mas Camus acrescenta à nossa época os dilemas existenciais.

Ora, carregar pedras não é o nosso cotidiano? o mito de Sísifo espreme a humanidade e suas pedras...

Quanta energia desperdiçamos inutilmente sem esperança não é mesmo? mas Camus realça esperanças e quer um final feliz para Sísifo. Ele diz que "assim como em certos dias, a descida de Sísifo é feita de dor, também pode ser feita na alegria. Esta palavra não é exagerada". Como assim? verdade que encontramos pedras e fardos pesados em nossos cotidianos, porém Camus lembra que somente a luta para alcançar o alto da montanha já preenche lacunas existenciais. Diríamos que na pior, ou na melhor das hipóteses, dá algo para buscar, alimenta a existência.

Entretanto, nao vamos esmorecer, e as piores pedras podem, e devem ser carregadas com força e satisfação. Com pedras sobre pedras vamos passando obstáculos. Acho que por aí percebemos que Camus não é pessimista como muitos afirmam, mesmo trazendo o trágico do absurdo em seu cotidiano.

Ele releva nossos anseios com um divórcio do homem com sua vida onde o "ator e seu cenário é propriamente o sentimento do Absurdo" acrescenta nosso filósofo.

Não temos opção, o cotidiano existe e nos resta encarar o que vier com sensatez e não com a indiferença de Mersault. Num colóquio com essa temática, uma psicóloga disse que Mersault era o exemplo tipico de narcisista sem preocupações humanas ou materiais.

Pode ser, mas na minha modesta opinião, não seria o caso. Uma outra psicóloga afirmou que Mersault era ingênuo mesmo. E assim vemos a complexidade da natureza humana.

Aí também tenho minhas restrições porque acho que um ingênuo mostraria suas emoções no enterro de sua mãe.

Enfim, vamos percebendo lados positivos e negativos nas teorias de Camus e situo Marseault num mundo sem malícia, até com certa ingenuidade, mas nem tanto . E se estamos condenados à morte desde o dia que nascemos, com pedras ou sem pedras, ou pedrinhas que sejam, o melhor é descobrir transportes para esses pedregulhos.

Sendo estrangeiro ou não.



 
 
 

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1 Comment


williakatia
Aug 16, 2021

Excelente texto. Camus, com sua inesgotável perseguição pelo sentido de uma vida sem sentido, nos faz repensar o que fazemos com ela. Parabéns!

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